São 18 horas e 23 minutos de uma sexta-feira. Eu, uma Anisoptera, estou no centro de uma grande metrópole, civilizada, imagino.
Uma porta se abre e o barulho do ambiente assusta. Após a percepção do ruído, o volume de veículos e a sensação de caos assustam mais ainda. Um amontoado de carros, ônibus, motocicletas e gente travam uma batalha em meio ao ruído, a fumaça e à profusão de cores e cheiros.
Estou aqui há milhões de anos e essa raça, garanto, é uma das mais interessantes e mais paradoxais que já vi passar por aqui.
Sobrevoo em direção à estação de ônibus, observando o ecossistema urbano, tentando relacionar o que vejo com a possível forma de vida dessas criaturas: um homem tem a cabeça e o corpo coberto por um cobertor imundo. Seus pés, a única parte visível, estão sujos e feridos. Mas ele dorme em meio ao tumulto. Uma adolescente tromba com um poste, assustando-se e deixando o celular cair no passeio irregular e empoeirado pelo monóxido.
Homens e mulheres tomam cerveja em um bar, de pé, como se algo fosse acontecer. A conversa em alto volume, somado ao ruído e a desordem do local formam uma aura de energia pesada, cansativa, triste e sombria.
Avanço mais um pouco, e na porta de uma lanchonete, uma criança maltrapilha espera ansiosamente por um momento de generosidade de seu semelhante que lhe traga um pedaço de comida para aplacar sua fome. Coloco-me em frente aos seus olhos e percebo que a fome não é só do seu corpo, mas de toda a sua alma. É uma fome de vida.
As luzes da cidade refletem em todas as direções dentro dos meus olhos multifacetados, mas me cegam em vez de iluminar o meu caminho.
Tento me fixar nos reflexos que vêm dos olhos de cada ser que passa e percebo o mesmo vazio do olhar da criança da lanchonete. São reclamações, olhares sem brilho, raiva, pressa, impaciência e uma sensação de buscar algo que não sabem o que é. Como vivem esses seres? O que buscam? Por que estão vivendo dessa forma? Vou pousar.
Agora sou eu, um humano. Em meio ao caos, pensei: encontrar uma libélula quietinha em um banco de cimento na estação de ônibus, desviou meu foco por um momento.
Eu estava pensando em algumas colocações que li em um livro de Logosofia, e uma das coisas mais interessantes que me chamou a atenção foi o fato desta autoproclamada ciência tratar o pensamento como um objeto; algo que possa ser manipulado, observado, modificado. Algo cuja posição em nossa mente possa ser trocado de lugar, priorizado, passado a segundo plano, lembrado, esquecido.
Ao sair do trabalho em uma sexta-feira tumultuada, tentei aplicar um dos métodos, que consistia em observar tudo à minha volta, sem julgar, mas coletando informações para reflexão. Foi então que comecei a ver no homem deitado no passeio, na adolescente se assustando, na criança faminta, e nas pessoas pelas quais fui passando, como estamos mal! Como temos males e enfermidades no corpo, na mente e na alma para tratar! Como nosso projeto de vida, se é que existe um projeto, é frágil.
Qualquer ser de outra espécie, ao fazer um pequeno passeio em uma grande cidade, perceberia com facilidade que a espécie humana está em vias de sua própria destruição.
A Logosofia começa seu discurso afirmando que a cultura atual apresenta em todas as partes sintomas inconfundíveis que prenunciam sua inevitável decadência. Essa afirmação seria banal, visto que pode ser facilmente confirmada, caso não trouxesse consigo um conhecimento capaz de interromper esse processo de decadência: o conhecimento de si mesmo, do seu mundo mental e espiritual, e de sua relação com as leis naturais.
Através do autoconhecimento e da observação do funcionamento da natureza podemos nos superar em vez de superar o semelhante. Isso para mim é a fonte de toda a melhoria de nossas relações e realizações.
A libélula levanta seu voo… Eu continuo pensando…